(Esta crônica foi feita para apresentação de três pintores na exposição Caleidoscópio, ocorrida na Escola de Comunicação da UFRJ, entre 26 de outubro e 14 de novembro de 2012. Contou com os pintores e suas pinturas: Javier Barrera (México), Fernanda Lemos (Brasil), Bill Allen (Austrália). Abaixo seguem fotos que tirei das obras enleadas com a crônica que escrevi para o evento. Para quem não foi, é uma possibilidade de comungar deste momento especial. Grato a extensão universitária da ECO-UFRJ pela abertura da vitrine/galeria.)
Trilhos ferruginosos de Santa Teresa onde trafega o bonde ausente, antes lotado de desejos, tipos artistas, tipos comuns, tipos estudantes, com suas fardas escolares, outros tipos intelectuais, estes que promovem encontros quase marcados na bifurcação do Largo do Guimarães.
Quando os trilhos se separam e cada bonde segue seu rumo. Antes, ali, muitos descem, seguem aos bares, cafés, ateliês, casas de amigos, ou sentam-se no banquinho colonial de madeira envelhecida na pequena estação coberta com velhas telhas escurecidas pelo tempo e/ou a poluição de CO², que os carros cospem na cidade.
Tantas as surpresas que vivi e vivo numa simples viagem no saudoso bonde que continua a nos levar imaginariamente para cima e para baixo nessa vida glamourosamente severina na nossa querida cidade maravilhosa!
Numa destas noites quentes, conheci Fernanda, apresentado por uma amiga comum. Fernanda, moça bonita e sagaz, bebe bem e tem um espírito sarcástico saliente a ouvidos nus. Como se diz aqui no Rio, ela: “é lá de São Gonçalo,” a segunda cidade em população no Estado Fluminense.
Pintora Fernanda Lemos
Domingo reencontrei com um amigo conhecido há alguns anos atrás num apartamento que dividi no Bairro da Glória. Não me recordo bem, mas tínhamos uma festa para alguém ou sobre algo, regada a bastante cerveja e alimentada, obviamente, por várias moquecas baianas: de ovo, de soja, de vermelho, arraia. No meu caso, era mais uma apresentação aos que habitam a cidade da Guanabara, e para o Javier, não faço ideia.
O negócio é que o conheci neste momento e depois o reencontrei neste dia solar, após anos. Tarde quente, agitada, poucas nuvens, céu azulin, típico verão carioca. Um dia no qual Santa recebe moradores do restante do Rio e turistas de todo o planeta.
Entre uma cerveja e outra, Javier me diz que está a morar em Santa, respondo que também estou, descobrimos que somos vizinhos de ruas que ficam paralelas. Ele marca uma cerveja em sua casa com comidas e pimentas mexicanas. México que é sua terra natal, a qual, por seu povo e sua história tenho respeito e carinho.
Com esta cerveja e boa comida mexicana nos encontramos e conheci Billy, um australiano, que vive há muito no Rio de Janeiro e também é muito calado, apesar de entender bem o português e falar pouco ou nada.
Tempos depois, numa das noites no Bar da Cachaça, encruzilhada de sonhos e tragédias, convido Javier para realizar uma exposição na UFRJ, onde certamente agora está sendo exibida.
Depois, sugeri chamar Fernanda e Billy para compor então uma tríade, uma dialética, uma comunicação entre continentes, cidades, gentes, artes, desejos num lugar onde jamais soube que ocorrera uma mostra de pintura. Mesmo sendo uma escola de comunicação.
Disto, o Javier faz uma provocação para mim, em um novo encontro na sua casa juntamente com os outros pintores. Deveria eu escrever uma crônica sobre esta exposição.
Cá estou eu a lhes oferecer este texto. Contudo, mesmo sendo um apaixonado pela pintura. Devo declarar que sou daltônico e pouco ou nada distingo de cores, quando penso que sei alguma cor, na verdade erro fácil, e acerto longe a composição de cores que enxergo na tela.
Por este motivo, então Fernanda, Javier e Billy gostam ainda mais da possibilidade de eu escrever sobre suas obras e a exposição. Topei com esta limitação ou ampliação dos meus sentidos, afinal, ser daltônico é ao mesmo tempo afirmação de uma outra maneira de ver o mundo que escapa ao controle e a regra do padrão geral. Por isso é também libertador não ver o mundo como todos outros.
O que se lê agora não é uma crônica da exposição ou mesmo análise estética das obras, no sentido de sua relação entre harmonia da composição, técnicas, cores e narrativas. Suas obras foram observadas e enxergadas nos nossos encontros preparatórios desta exposição. Exceto Billy, que vi as obras abstracionistas com provocações que me soavam algo como sofrido e de narrativa de sonhos, de saudades de vidas, de desejos.
As cores ainda se misturam na minha mente trazidas por uma retina que não enxerga as variações de tons, ou por um desconhecimento classificado como daltonismo. Senti que mesmo no alto do meu limite e liberdade relativo com a cor, eu fui tragado por uma dança viva, como o vento que percorre o planeta e que ninguém vê ou sente o sabor, mas sempre nos toca: as personalidades dos pintores são suas cores também, e eu as enxergo.
- Pintura de Bill Allen
Novamente no Largo dos Guimarães, vou à casa de Fernanda, lá comemos e bebemos, e comentamos sobre arte pintura, falamos de mercado e sobrevivência, ela me mostra suas últimas criações. Estas têm uma força de cores métrica e espiral arrebatadoras e, sobretudo, é algo que transita entre o ser pintor criador e o ser gente, com seu olhar sobre o lugar de onde veio e para onde vai.
Seus personagens rindo, mulheres comuns, os ícones “pop star” da TV brasileira me remetem a um cem números de reflexões e autocrítica, sem me violentarem, e dando até mesmo uma certa com idade para a interpretação espontânea.
Coisa de jovens que querem aprender sobre si e sua arte? Assim fico contente de agora ela ter mais olhos de mais mundos vendo sua obra e contando e considerando este expor-se como uma aula a mais no seu caminho de leitora/pintora particular e singular do mundo.
As narrativas dos pintores são também cores, e eu as enxergo, e vibro com seus tons discrepantes entre os olhares do pintor que a cor expressa e que o daltônico enxerga diferente e despretensiosamente.
Então vamos a Javier, um cronista do Rio de Janeiro e do Brasil. Sua obra traduz o atmo de tempo em que ele esteve presente, esteve a observar, a pintar, e descrever.
E mais que uma câmera a fotografar ou filmar, é a recriação das gentes e dos espaços tendo a luz carioca e o olhar do mexicano. Em ambos os casos, uma luz capturada com olhar mexicano, e por tanto distinta, e um olhar capturado pela luz do Rio, assim se pare uma crônica lírica plástica sobre o tempo e as gentes invitando o observador a sair de seu lugar tradicional, e provavelmente cômodo, em relação aos lugares e pessoas que julga conhecer tão bem e que, neste momento, é desvelado com a simplicidade de quem olha de dentro como transeunte atento e descolado das limitações de um cotidiano frio.
Não é preciso conhecer as cores segundo o padrão para saber que há cores e que as gentes vibram em tons e também cores de acordo com cada observador.
Pintura de Javier Barrera
Dizem que um daltônico só enxerga três cores básicas. Com estes três pintores enxergo mais e além. Cores, luzes, gentes, os pintores somam o conhecimento e entendimento de suas cores com os do escritor. As liberdades se ampliam quando se encontram.
Eu os leio nos seus quadros. Uma narrativa sensível e profunda, como um vermelho de fim de tarde num inverno, como a pintura de Billy, ou na Fernanda, uma métrica colorida e aconchegante como solo cor de terra fértil para refletir, recriar o estar, e o Javier como articulador de narrativas, sejam relativas aos seus companheiros de pintura, seja a este daltônico. Ou seja, uma cor preta que a tudo absorve e projeta.
Apresento-vos então a exposição onde a comunicação, a sensibilidade, e a possibilidade estão articuladas pela arte, livres por assim lutar diariamente.
Aqui as cores, pintores teem suas narrativas e tons, e nós espectadores podemos criar e realizar novas narrativas plásticas.
15/10/2012
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